Gina, a mulher que tem um blogue

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sexta-feira, 3 de agosto de 2012

A faminta

Milena tinha fome e entrou numa pastelaria duma avenida lisboeta, aquela que tem três A's. Não gostou particularmente de nenhum dos bolos ou salgados à vista. Fez uma cara descontente, apresentou-se séria. Com os olhos baços de cansaço apela ao funcionário:
– Hum, ora bem, tenho fome. Acha que estou no lugar certo?
Ele sorri pela metade, balbuciando um sim praticamente inaudível, fingindo amabilidades. Faz-lhe saber dos croissants, que ainda estão no ponto, deseja um... Milena aponta para um pão de deus, é pequeno e tem boa cor.
– Será que já está seco? A esta hora, com este calor...
– Manda-se amornar.
Diz ele, ainda não refeito com a estranha forma de comunicar desta senhora, tão depressa se mostra intransigente como compreensiva. Talvez necessite de atenção, pensa ele, há tanta solidão neste mundo... Ou se calhar é uma puta sem norte com vontade de chatear os cornos à malta.
Milena pede também uma água natural.
- Água natural, por favor, não água fresca. - Frisa. E senta-se à espera. O pedido é aviado e o homem ordena a uma outra funcionária:
– Dê este pão e esta água àquela senhora, se faz favor.
Milena é servida por uma mulher com ar de cozinheira, tem uma touca encardida e um avental nodoso, e apresenta-se séria e muda. Pousa o pedido em cima da mesa e ao afastar-se comenta com o colega acerca das camionetas que ainda não passaram.
(Ainda não passaram, ainda não passaram, ainda não passaram.)
Há um grande frenesim em volta desta passagem, o que espicaça a curiosidade de Milena que se põe a escutar, sem medos, a conversa dos dois. Ali ninguém a conhece, pode fazer figura de maluca à vontadinha. Ainda que esteja com a atenção toda virada para eles não consegue perceber nada que valha o tempo despendido. É então que se lembra do bloquinho rudimentar, escreveria outras casualidades, pouco importa o que escrever, tem de escrever e pronto.
Depois da primeira dentada a fome foi embora, Milena come sem prazer. Escrevia e ia comendo. Migalhas de pão de deus (que afinal estava) seco caíam-lhe no colo, ao afastá-las fez um risco de esferográfica na saia o que a incomodou um bocadinho. Mas cedo lhe passou o incómodo, chegaram clientes. O homem que lhe havia amornado o pão de deus agora mostra toda a simpatia do mundo:
– É o costume ou vai-me surpreender, senhor doutor?
Este senhor doutor está de costas, Milena não consegue ouvir o que ele diz. Só ouve o simpático-mor com perguntinhas de um humor requentado:
- Tem a certeza?
- Está decidido?
Ali pelo meio da troca de galhardetes Milena ouve algo como 'subjacente', e a simpatia-supra vai debitando mais palavras, todas terminando em 'ente' para parecer culto e entendido, sempre com uma voz baixa e monocórdica. Chega outro cliente, este é pequeno e forte e o simpático-da-cunha solta mais um chorrilho de vocábulos muito 'entes'.
Milena aborreceu-se, pagou e bazou. Já não havia fome sequer. Saiu à rua, o ar fresco do entardecer foi retemperador… Ah, como Lisboa é linda!

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