Fui a casa da senhora dos valores. Soube hoje que é ginecologista e fiquei à espera que me perguntasse qual a data da minha última menstruação.
Mas não.
Eu e o meu colega tratámos-lhe do intercomunicador.
Havia muitos quadros nas paredes (cá estão os valores), um deles retratava uma figura escura, de traços muito estranhos, sentada em cima dum ramo de árvore caído no chão a fazer de assentadeira casual, com a cara desfigurada, as mamas dois círculos verdes, as mãos e os pés num ângulo impossível, caso a figura fosse de carne. Notei que os pés eram diferentes entre si, como efetivamente são diferentes os pés das pessoas.
Tratámos-lhe do intercomunicador, disse eu, e tratámos, fiz uma série de viagens de elevador acima e abaixo por modo a saber se o dito funcionava. Também falámos via telemóvel durante muito tempo com os mesmos intentos e propósitos.
Foi muito engraçado.
Não teve piada nenhuma.
Um jovem saiu do prédio e olhou-me com curiosidade. O mesmo jovem regressou uns dez minutos depois e perguntou-me se eu precisava de ajuda sem a expressão benévola de quem quer auxiliar o seu semelhante, portanto querendo antes perguntar quem sou e que raio estava ali a fazer parada a mexer no botão da campainha. Respondi à primeira e à última questão duma assentada: 'Não, muito obrigada. Estou aqui porque estou a arranjar um intercomunicador.' A pergunta do meio ficou sem resposta, ele que fosse mais explícito, ora que porra. Entrou no prédio sem dizer mais nada, levando com ele a cara feia e deixou-me de braço esticado a carregar num botão preto e redondo.
Quis perguntar ao meu colega se carregava no botão ininterruptamente. Mas não queria dizer a palavra ininterruptamente, queria uma coisinha mais humilde, simplória, e não me ocorria. Que merda, pá, quero ser uma pessoa como as demais… Vai daí lembrei-me: 'Olha lá, carrego aos soluços?'
Lisboa, 19 de junho de 2013
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