Vou para casa de transporte público. Logo após escolher o banco dá-me vontade de anotar coisas nos papelinhos, o que é meu costume, mas embaraço-me com isso, o que também é meu costume. Mas entretanto… Porque não rabiscar durante o trajeto? Ademais, a minha companheira de banco não iria espreitar, é cega. Decerto lhe chega o cheiro da tinta ou ouve o restolhar do papel ou o raspar da caneta mas é garantido que não vai ler os meus rabiscos, não os pode ver.
|Como contentarão os cegos as suas curiosidades?|
Decerto lhe chega o som do fecho da mala, da caixa dos óculos, o meu ligeiro tornear de pescoço, admirando a paisagem nos intervalos dos apontamentos. Decerto ouve tudo, diz que os cegos apuram em muito os restantes sentidos.
|E o sentido de orientação, como é que aquela mulher sabe onde é suposto sair? Pede um aviso ao motorista?|
A dada altura noto que a mulher cega cabeceia, tem sono, afinal. Se visse tão bem quanto eu talvez não se lhe chegase curiosidade nenhuma...
Loures avista-se. Preciso sair não tarda. A mulher já não cabeceia, quem sabe agora vá concentrada nas curvas da camioneta, a ver...
|Que ironia...|
… Se descortina o ponto onde está. Mexo-me um pouco, colocando a alça da mala no ombro.
|Já havia deixado os escritos.|
– A senhora dá-me licença, por favor? - Pergunto eu, e ela devolve-me uma pergunta:
– Esta paragem é o liceu, não é?
– É, sim.
… Fiquei estupefacta... Ela não vê, dormitou e não estava desacertada com o mundo dos visuais, só precisava duma certeza pequenina... Mas que intuição louvável.
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