No livro que ando a ler lá por casa (A Fé de um Escritor', Joyce Carol Oates), a dada altura a autora refere que tem o seu ateliê tão envidraçado que pode observar a paisagem sem barreiras e se detém muitos minutos nessa observância.
Tenho um lugar assim. Vejo a rua. Pessoas passam. Sempre diferentes. Se são as mesmas pessoas então não passam da mesma maneira ou então não as vejo da mesma maneira. Há uns anos despejei em vários posts dezenas dessas visões por mim iluminadas.
«o bêbado... não caminha, ondula... parece ele que está em alto-mar no meio de grande tempestade... e está... ou vai estar quando lhe chegar a sobriedade...
o senhor doutor ali do centro de saúde que, assim de raspão, o que salta à vista é a total ausência de pescoço...
a mulher que quis cobrir os cabelos brancos e os pintou de... cor-de-laranja... sempre disfarça qualquer coisita e assim até continua a conseguir virar cabeças masculinas (e as femininas também) à sua passagem...
o senhor que espirra três vezes seguidas por causa do pólen que anda no ar devido ao corte do gramíneo...
a velhota baixinha e atarracada que mastiga a língua permanentemente e diz à laia de feito revelador de um elevado grau de bravura, que já matou sete...! sete maridos...!!!
a rapariga que daqui parece ter os ombros, a cintura e a anca, tudo da mesma largura, quer dizer... se calhar os ombros são um nadinha mais largos que a anca mas ao passar na rua as cabeças masculinas lá seguem o seus movimentos... o que prova a minha teoria de que os homens olham para toda a porcaria...
a menina recentemente doutorada que, por isso, mudou radicalmente de tipo de indumentária - passou de top de alcinhas e calções, para fato calça-casaco (vermelho na maioria dos dias) com camisa branca, cujos punhos e colarinho a mãe, sim é a mãe que tem que pôr de molho em descorante raposa para que continue tão alva como quando a comprou, não vá a filha doutora fazer má figura lá no escritório...
uma senhora que em sentido figurado se podia dizer que parece um boneco sempre-em-pé ou então um barril daqueles de vinho - toda ela era ganga justinha ao corpo... que maravilha de mulher... hummm... se ela caísse era daquelas pessoas que caía redonda, ou então... não caía...
um jovem de t-shirt de cavas largueirona, boné com a pala para trás, brinco brilhante na orelha, um ar de rufia e andar à "macho que já sabe dar uma queca mas a única que deu foi a uma cota com as carnes descaídas ali para os lados da rua de s. nicolau e ainda teve que pagar"...
um velhinho que arrasta os pés com passos muito rápidos e muito curtos, parecia que ia estender-se ao comprido a qualquer momento, o incrível é que o desiquilíbrio era o que evitava a queda - fato cinzento às riscas brancas e chapéu a fazer lembrar o tempo da sua juventude... deixa ser... sempre protege deste sol tão quente...
um grande cromo aqui da rua - colete de caçador, boné à alentejana que levantaria da cabeça educamente se me tivesse visto, e seus óculos de lentes enormes e armação tão brilhosa que difunde raios de luz quando em contacto com o sol directo...»
Antigo Blogue, setembro de 2008
Sem comentários:
Enviar um comentário