Terminei a leitura do livro 'Os Objetos Chamam-nos', Juan José Millás. Gostei muito. Muito, muito. São contos estranhamente contados, alguns são mesmo surreais. Recomendo. Perguntei a outro leitor o que tinha achado deste livro. Diz que gostou muito, achou muito interessante. Isto sou eu a estender o assunto, que já não sei que dizer mais. Melhor deixar uma dessas crónicas abaixo.
O mistério e o absurdo
«Ela estava a instalar um programa no computador quando ele entrou na sala e confessou que se tinha convertido.
-Convertido em quê? Ou a quê? - perguntou a mulher tirando uma disquete e introduzindo outra com a língua fora da boca, como quando fazemos um trabalho manual que requer muita concentração-
- Ao catolicismo.
Sem deixar de falar com o marido, ela mantinha um diálogo excitante com o computador, cujo rato movia de um lado para o outro, ao mesmo tempo que escutava com ansiedade o ruído de tripas proveniente do disco rígido. Cada passo levado a cabo sem tropeços parecia-lhe mais um milagre da Natureza do que da técnica.
- E a partir de agora, fá-lo sem concupiscência? - gracejou.
Ele abandonou piedosamente a sala e não voltaram a encontrar-se até à hora do jantar. A mulher estava contrariada porque acabara por não ser capaz de carregar o programa devido a um problema da memória operativa.
- É mais fácil – disse ela – enfiar o catolicismo no cérebro de um homem do que um processador de testo no disco rígido de um computador portátil. Os computadores são mais delicados do que vocês. De facto, tu foste comunista, social-democrata, budista, ginasta, cineasta e agora católico. Se eu tentar carregar toos esses programas no IBM, ele bloqueia por causa da memória operativa. De certeza que tu só tens memória RAM. Vai ao médico para ver o que ele te diz.
Ele comeu o galo frito e as acelgas refogadas com humildade, sem responder a nenhuma das provocações dela, e depois de jantar retirou-se para o quarto enquanto a mulher ligava a televisão, selecionando um programa sem qualidade em que a locutora tinha uma cruz pendurada ao pescoço. Não sabia se estava irritada com o computador ou com o marido. Pouco depois, adormeceu, mas a buzina de um carro acordou-a passados cinco ou dez minutos. Debruçou-se na varanda e viu um homem fora de si, cujo carro estava bloqueado por outro em segunda fila. A mulher rompera águas e não havia maneira de conseguirem um táxi pelo telefone porque transmitiam na televisão um jogo de futebol considerado transcendente. Ela foi ao quarto e encontrou o católico a dormir à rédea solta, como se não tivesse problemas de consciência. Depois de se despir, deixou-se cair violentamente junto dele, que acordou sobressaltado.
- Então agora és contra o aborto? - perguntou ela.
- Já podes imaginar que sim – disse ele, esfregando os olhos.
- E a favor da pena de morte.
– Não tentes confundir-me. O facto de me ter convertido não implica que não tenha as minhas contradições, mas sim que preferi o mistério ao absurdo
- Meu Deus, que frase. De quem é?
– De um bispo, acho eu.
– Claro. Quer dizer que eu neste momento te pareço absurda? Porque se é isso, divorciamo-nos na semana que vem.
– Eu não te disse que temos de nos divorciar.
– Mas disseste que sou absurda podendo ter ao lado uma misteriosa. Jamais me passaria pela cabeça que as católicas tivessem mistério, estás a ver. Como se não lhes chegasse a morbidez da pureza.
Como ele não respondia, levantou-se violentamente da cama e gritou:
– Sabes o que te digo? Que se tu voltas À religião, eu volto ao haxixe.
Saiu do quarto e regressou pouco depois com um charro aceso que lhe passou depois de dar duas ou três passas. O homem fumou-o com alguma ansiedade e quando lhe fez efeito disse:
– E ainda não fui muçulmano, nem mórmon, nem quacre. A vida é um prodígio. Já o meu pai mo dizia antes de deixarmos a província: em Madrid, um homem pode ser o que quiser, o que quiser. Agora quero ser católico.
– Tens de arranjar tempo para te dedicares aos videojogos. Os computadores são tão apaixonantes como as religiões.
– Vamos ver como correm as coisas – disse ele, e virou-se para se entregar ao sono. Ela ligou o rádio e sintonizou um programa dedicado ao satanismo que ouviu deitada de barriga para cima, pensando no problema que tinha com o computador. O despertador não tocaria antes das sete.»
Sem comentários:
Enviar um comentário