terça-feira, 27 de outubro de 2015

Olhares incorretos

Rua Inominada. Primórdio. Do meu balcão avisto semanalmente uma certa janela. À segunda-feira a mulher-a-dias põe a roupa da cama a arejar por sobre o parapeito. Quando chega o outono coloca o cobertor de riscas e a colcha escura, se é verão apenas uma colcha leve e clara aparece. Os 'Olhares Incorretos' nasceram daí, vejo Lisboa sem nunca ver o mesmo que a outra gente, por causa daquela coisa intrínseca, porque todos somos iguais mas mantemos uma individualidade: as pessoas sentem e escrevem o que querem, existe em todas as mentes um mundo sobre o qual mantêm a soberania. Então: é por isso.

Avenida Almirante Reis. O meu vulto é facilmente reconhecível, sou a senhora da drogaria. Uma suposta cliente avistou-me e estendendo-me um objeto, perguntou-me:
«A menina faz?»
E a respondeu:
«Faço, sim senhora, mas levo xis»
Ainda vou merecendo o epíteto de menina mas levo cada vez mais caro.

Cais do Sodré. Vejo pessoas, não diferentes. A vida é plana. É plana, a vida de toda a gente. É por isso que as pessoas passam a vida – plana e incaracterística - a mover montanhas e a criar ondulações, num esforço enorme para sobreviver à inércia e depois não sucumbir à mutação das montanhas e às marés.

Praça Afrânio Peixoto. Cheira a comboios. São azuis. Só está calor ao sol, e isso é um tema natural da primavera.

Praça Afrânio Peixoto. A tarde apresenta-se ensolarada. O arbusto dança. Cheira a comboios. Assentam sobre carris. São azuis. Mas há uns vermelhos e cinzas e uns que são cinza com uma risca vermelha que acompanha a largura das janelas, assim a toda a volta, na horizontal. Não sei se dá para perceber. Nunca se sabe quem percebe, nem quem perceberá. Nunca saberei quem percebe, e quem percebe entende como quer - ou entenderá, melhor redigir no futuro, que a esperança está no porvir -, o que não quer dizer que não se perceba ou não se entenda, nem quer dizer que queira dizer alguma coisa. Coisas daqui, sem me repetir, é difícil.
Leio. Uma página ou duas. E escrevo. E esforço-me por não me concentrar antes no sorriso daquela estátua. A verdade é que a estátua me sorri durante uns milésimos de segundo e daí não passa, logo após noto-lhe a expressão que realmente tem e mantém, por mais que a rodeie. Muda o meu ângulo de visão e nunca mais muda a expressão, é uma estátua triste, afinal. Segura outra estátua que está caída a seus pés, com um ar sofrido que só visto, visto que eu não sei escrever. A estátua grita, parece-me. Inaudivelmente, parece-me. Não se ouve nada. Apenas a dança do arbusto e os comboios rolando, apitando, sem pessoas.
Eu leio e escrevo. Não, escrevo e leio. Interrompo-me constantemente. É a monte. Tudo na minha vida é a monte. Trabalho a monte, com montes. Sou a monte, encavalito tudo. Escrevo e leio a monte. E tropeço nos montes e montes. Tropeço aos montes. Amontoadamente. Amontoo o livro e a caixa dos óculos e o bloquinho rudimentar e a caneta e os óculos escuros em cima da mala que tenho no colo. Tenho dois pares de óculos assentes na cabeça. Um no toutiço, outro no nariz. Escrevo. Mas se disser que escrevo como de costume estarei a repetir-me. Mas coisas daqui, sem me repetir, é difícil.
Nunca falei dos bancos de jardim. Não sei. Se calhar já falei. São muitos. Metade deles à sombra, escondidos. Albergam velhinhos desocupados e adolescentes em intervalo de aulas. Contentes e tristes, uns e outros. Troquei-me: os velhinhos estão tristes; os adolescentes estão contentes. Há uns bancos com a pontinha sombreada. Sento-me aí, que a parte soalheira escalda. Leio. Escrevo. Não, escrevo e leio. Dou mais importância ao escrever mas o ler é importante. Para aprender. Para não repetir o que os outros escrevem. Para ser eu. Coisas daqui, sem me repetir, é difícil.

Praça do Chile. Avisto o Fernão de Magalhães que se me apresenta de costas. Por cima da sua cabeça de pedra aparece um prédio. Por cima do prédio nasce um arco-íris. O Arco-Íris. Cores, mistério e sedução. Que mescla prodigiosa.
Mas eu vinha falar das buzinadelas. No redondel da estátua, mesmo junto à estrada e aos carros que passam, um grupinho de manifestantes segurava um enorme pedaço de plástico onde tinham pintado a mensagem: «se estás a ser roubado, apita». E tudo quanto era condutor apitava. Que barulheira. Mas uma barulheira boa, nada contra, não senhores, acho bem as pessoas manifestarem-se.

Arroios. De momento sou imprecisa na toponímia. E sou imprecisa porque sim. O funcionário que me aviou umas coisitas elétricas preenchia a minha ficha de cliente fazendo trejeitos com a boca. Inicialmente ainda pensei que ele estava a cantarolar o Bon Jovi que se ouvia em som de fundo. Mas não. Eram trejeitos de grande concentração num teclado. Quando percebi isso saquei do meu bloquinho rudimentar e apontei ‘trejeitos’ e ‘Bon Jovi’ enquanto ditava a morada, nif e outras numerações. Um outro funcionário vigiava os movimentos do colega com o semblante tão carregado de estranheza que me fez comichão. «Caraças pá, o outro não saberá escrever?» A sério, o homem tinha um ponto de interrogação desenhado na testa. Findo o negócio o digitador resolve soltar a poesia que há em si e declama sonhadoramente:
- Está um tempo tão lindo…
|Os homens são primários mas/e tão mais interessantes que as mulheres, oh céus.|

Lisboa. Pode ser qualquer rua ou viela, continuo imprecisa, ocultando o resto porque tenho medo. Dois homens encontram-se e cumprimentam-se. Logo depois fazem uma troca → dinheiro, droga. Um deles parece-me normal, o outro aparenta estar na fase junkie. Quando me cruzo com eles, olham-me de soslaio, não receosos, antes cautelosos. Resolvo olhar para outro lado, como quem foge dum problema desconfortável, e não vou descrever a cena com mais minúcia do que esta.

Jardim Fernando Pessa. Um jovem sentado na relva, cigarro aceso, deleite na sugação. Vive. Um velho à janela observa e segura na mão uma chávena de café. Vive. Um ainda mais velho exercita-se num daqueles aparelhos de rua tão em voga pelos espaços verdes de Lisboa. Enverga gabardine e cachecol, crava o olhar no chão, embaraçado que está. Vive. Um homem passeia dois cães sem vontade. Vive.
Duma maneira ou doutra as pessoas vivem. Vive-se. Estar morto é o contrário de não fazer, não estar nem ser.

Rua de Arroios. Se os postes estiverem no lugar é sinal que sim. Um dia encontro um dos postes deitado ao chão e pumba, aí é que vai valer a pena. Enigma. A ideia é descarregar sentimentos ou impressões, ainda que duma forma adulterada. A escrita é necessidade; vício; hábito; catarse. E entender-se torna-se secundário.

Alameda Dom Afonso Henriques. Um papel colado na máquina que temporiza a alternância dos semáforos pede ao João Manuel que se case com ela, em favor dos beijos e abraços que já trocaram. Ela ou ele, não se sabe, agora já tanto faz, elas casam com elas; eles casam com eles. Com o tempo, talvez o amor tenha ganho outro significado, não demente, antes diferente.

Rua de Arroios. Num patamar do meu pensamento há fileiras de malas e amontoados de detergentes. Pronto a vender. Comprar. Usar. É tudo apelativo pela cor, mas inerte, e portanto estou num vazio, afinal estou no vazio se me encontro neste quadro.

Rua Quirino da Fonseca. A lascívia mora aqui. Sinto-a mais ou menos intensamente. Respiro-a um tudo-nada. Impera na cabeça dos transeuntes, provavelmente devido à loja de artigos sexuais sita neste pedacinho de cidade.

Avenida Almirante Reis. Vem ali uma senhora que eu referenciaria com tendo a barriga grande. Mas é melhor não. Só por dizer que tirando essa referência não sei como continuar a prosa.

Avenida Almirante Reis. Uma desconhecida interpela-me e pergunta:
‘A senhora traz horas?’
A mim os desconhecidos oferecem-me questiúnculas, flores nem vê-las…

Avenida São João de Deus. Um grupo de rapazes entre os 10 e os 12 anos conversa sobre a beleza das raparigas em geral.
– A Mafalda é mais gira que a tua prima! - Diz um deles.
Entretanto avisto ao longe duas raparigas e ao perceber que os rapazes estavam a falar para elas de longe, e portanto todos se conheciam, fiquei curiosa de saber se alguma seria a tal Mafalda. Então, ao passar por elas, vocalizo explicitamente o nome, sem medos, a ver o que acontecia.
– Mafalda.
Não aconteceu mais do que virarem as cabecitas para mim e fazerem um esgar de espanto, decerto pensando que sou maluca. E pronto. Eu bem me esforço, mas na minha vida as ondas não encastelam.

Rua de Arroios. No jardim que por ali há alguém coloca a roupa nas cercaduras metálicas dos canteiros. Cercaduras metálicas dos canteiros? Cercaduras metálicas dos canteiros.

Rua António Pedro. Eu gosto do secretismo. É como uma carícia perdurante. Faz de conta. Mas pouco me importa que o homem doente do fígado me reconheça. Mesmo que me reconheça por debaixo do disfarce. Eu respiro bem na mesma, obrigadinha. Vivo.

Rua Morais Soares. Um homem vende raminhos de espiga a um euro. O dia está no fim, a voz dele está rouca de tanto apregoar. Um euro, agora. De manhã, dois euros. Melhor rentabilizar. Melhor levar algum para casa, que é tudo lucro. Impostos...? Não, parasitismo.

Jardim Fernando Pessa. Um homem pratica Tai Chi, descalço, no meio da relva. Sozinho. Inteiro. Ficava a vigiá-lo 'migo, mas não há nenhum banco disponível e como estou doente da cabeça custa-me estar de pé.

Avenida Padre Manuel da Nóbrega. Uma mulher levanta uma nota de cinco euros das novas por modo a ver o retrato da Europa através da claridade do sol. Tem uma expressão feliz. Infantil. Perfeitas aliadas, a felicidade e a infantilidade.

Avenida Padre Manuel da Nóbrega. Uma mulher deixa cair uma moeda de dez cêntimos no chão. A moeda rola na vertical até perder o balanço e o equilíbrio, tombando por fim. Penso em chamar a mulher. Perco-a de vista. Apanho a moeda. O café hoje vai ficar mais barato.

Avenida Padre Manuel da Nóbrega. Um homem vende bilhetes de lotaria. Tem um tom de voz que eu descreveria se soubesse como, mas de raspão posso afiançar que é bruto que se farta. A voz, os gestos, a presença. Estende-me o bilhete e diz:
'Tome lá.'
E se eu agarrasse no papel e fugisse? Ele estava a oferecer...

Avenida Óscar Monteiro Torres. As pessoas conversam. A sério, as pessoas conversam acerca delas mesmas e têm a capacidade de conversar acerca doutras. As pessoas conversam. Esta ilação espanta-me, deslumbra-me e ainda consegue aliviar-me umas dores que por vezes sinto.

Avenida Almirante Reis. Desço, à torreira do sol. Remataram o muro do hospital, ficou giro, torneado, como se fossem umas ondinhas. Calhando querem trazer o oceano para aqui. Está longe mas pronto, lembremos o rio, sempre é água. Mesmo ao pé da primeira ondinha avista-se o número três da rua António Pereira Carrilho mas se estivesse nesse ponto avistar-se-ia a primeira ondinha. Costuma ser assim: se eu te vejo, tu também me vês. Só que às vezes falha.

Miradouro da Senhora do Monte. É noite. Quente, sem ar. Devido ao calor havia mais pessoas e turistas que o costume. Sim, os turistas são pessoas, mas é isso mesmo: havia pessoas e turistas, são duas espécies distintas. Rente ao muro podia ver-se o esplendor da cidade: as luzinhas, as avenidas, ruas, becos, prédios. Em suma: civilização, obra humana, grandeza, charme. Achei a vista magnífica e despovoada e desejei que o miradouro se encontrasse assim, sem ninguém, vazio. Sem vida, bem sei, na vacuidade há ausência de vida. Que não se atente largamente nisto que escrevo, é somente a minha ignóbil e dominante ânsia de solidão a falar.

Alameda Dom Afonso Henriques. Finalmente dignaram-se a mudar a luzinha do semáforo que não era luzinha nenhuma porque estava fundida. Agora já é luz. Em verde. É um alívio atravessar a estrada, que eu deambulo desconcentradamente, e assim já posso dedicar atenção a outras minudências.

Avenida de Roma. Uma igual a mim, não, antes uma diferente. Troca a perna. Eu não. Mas há o livro; há os óculos escuros pousados cuidadosamente em cima da mesinha; há a mão apoiada no queixo; há o ar pensativo. É igual. Porém, não há mistério. Não. Não e não. Ela é diferente. Lê avidamente, muito compenetrada. Tem um vestido curto com florinhas vermelhas. Num repente diria que quer parecer mais nova mas não vou por aí, esse caminho é fácil, vou por outro, onde não há originalidade. Não é nada uma igual a mim, nunca saberia descrever-me verosimilmente.

Rua Inominada. Atrás do meu balcão, por ora. Escrevo: «A mamã e o papá ensinaram-me a não falar com estranhos mas não ensinaram os estranhos a não falarem comigo, devem ter pensado que não era necessário. Mas era. Hoje em dia passo a vida a falar com estranhos, e como sou muito bem educada – culpa da mamã e do papá - não consigo repudiá-los, até já me habituei a amá-los, o que na verdade é muito fácil, geralmente os defeitos demoram o seu tempo a emergir, o que torna os estranhos pessoas espetaculares.»

Alameda Dom Afonso Henriques. A velhinha fininha estava no quiosque escolhendo um gelado. Avistou-me e sorriu. Não percebi se por timidez natural se por embaraço pela gulodice. A gulodice é um desejo pecaminoso.

Avenida Guerra Junqueiro. Há festa, estenderam tapetes lilases no chão, à entrada das lojas. Não tenho praticamente nada contra balbúrdias mas talvez pareça que lhes tenho muito asco. Não tenho, não. Passo a explicar: o que me faz fugir das balbúrdias é a participação forçada, estar no meio, inserida, integrada, pertencendo ao aglomerado, uma pecinha de puzzle, uma cabecinha de alfinete, uma formiguinha seguidora dos seus pares. É disso que não gosto, aborrece-me. Fora isso adoro balbúrdias, muita gente junta, falas e gestos, até gosto da mescla de cheiros. Se puder ser uma mera espectadora, como estando frente a uma tela de cinema… Confortavelmente, prazerosamente, é um festim.

Rua Carlos Mardel. «É assim a vida! Está ali à espera da morte…» disse ele pesaroso mas resignado, enquanto observava um pombo que fora pisado por algum pneu e se debatia, movido pelo instinto de sobrevivência. Qual coragem, qual quê, aquilo não é coragem, é luta, agarração à vida com o que há, ou o que resta. Lutar até à morte, afinal de contas é o que faz incessantemente qualquer ser vivo, há sempre um atropelo ou outro para a gente se debater. E um belo dia... Pumba, morre-se.

Praça de Londres, sete e tal da tarde. Chupo um gelado perna de pau que não relembra o sabor de outrora, é deslavado que se farta, nem a lista vermelha a imitar os morangos pica na língua como antigamente. Que pena. Estou sentada num dos bancos, à sombra, mau grado, que a temperatura não está amiguinha, não, e o gelado vai refrescando, primeiro a goela, depois tudo por mim abaixo.

Alameda Dom Afonso Henriques. Eu vinha descendo o plano inclinado, se é inclinado não é plano, mas pronto, vinha descendo o passeio da fama, passeio da fama pode ser, vinha descendo e avisto um miúdo duns dez anos deitado no chão, de braços abertos, com uma expressão de devoção fingida, como quem brinca de receber as boas energias do asfalto, enquanto o pai o observa complacentemente. Sim, há um pai nesta história, um pai complacente, que deu por mim e mudou ligeiramente a postura, vocalizou um ralhete sumido, audível apenas para mim, mas o puto marimbou para o pai, já se sabe, e fez perdurar a brincadeira no chão. Este pai queria parecer preocupado e zeloso para mim, que tenho marcas de mãe experiente, não fosse eu ralhar com os dois. As mães é que ralham, as mães é que são autoritárias e cruéis.

Rua Ângela Pinto. Há dois homens zanzando na rua, querem vender pares de meias tecidas em fios sintéticos que rapidamente cheiram a chulé.

Praça do Areeiro. Porque será o verão tão quente aqui? Se é planalto, se leva com as rabanadas de vento, porque não há frescor?!

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