quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Rascunhos, ou então não

Continua presente a ideia de plantar todos os meus rascunhos no blogue o quanto antes. Os rascunhos a que me refiro não têm a ver com o blogue, ou por outra: têm, só por dizer que estão noutro plano, como que na calha para a publicação em papel, vá. Minto, não estão noutro plano, estavam, é passado. Este post vai então conter tudo quanto retirei do(s) blogue(s) e coloquei em alguns grupos de escrita do Facebook, com vista à posterior publicação em coletânea, a qual, já se vê, nunca aconteceu. Ressalvo que não são textos novos no blogue, tendo portanto anos de escritos, mas como gosto de registar ocorrências, que é o que estou a fazer, republico-os hoje.

Mudança de expressão
Uma cliente apresentou-se autoritária e ríspida, numa vez, e noutra, feliz e bem-disposta. Que fiz eu? Limitei-me a aturá-la, numa vez e admirá-la noutra, apreciando particularmente o último estado, por aniquilar o primeiro. Imitei-a, que sou muito boa a imitar estados, quando agradáveis.

Memória
Não, não é porque uma palavra leve a outra, não é por algo tão banal, é porque tenho memória. É certo que descombina com a memória da outra gente e, mau grado, assim cessam as conversas. Resta o monólogo, mas não me dou nada bem com isso, também.

1360
Menina Carrapato, a donzela infeliz. Ouviu-se histórias, comentou-se das tristes, que há poesia e harmonia nessas também.
Há lá coisa mais poética que a tristeza?

Um momento em Lisboa
Estou num quarto andar dum número qualquer sito numa rua que não interessa para nada. Só a cidade importa: Lisboa, a linda Lisboa. É noite. Há janelas com vida; iluminadas, telhados esconsos com águas-furtadas. Vejo uma enorme biblioteca sem ninguém zanzando, um moinho saloio no telhado, como que em adorno, mesmo junto ao beiral. Que coisa esquisita, que contraste mais assaloiado... Lá ao fundo há um prédio mais alto que os outros todos, no último andar a janela é larguíssima, sem cortinas, vê-se o candeeiro suspenso e as costas duma cadeira de estilo antigo.
E eu?
Eu escrevo este texto na minha cabeça.
Se o pensei assim?
Não.
Há memórias que se evadem, outras que se contraem e depois se expandem, ganhando uma vida que difere em muito dum pensamento corrente e veloz.
Cenas da minha vida, é o que é.
Se faço uma escolha criteriosa de palavras?
Sim, sou escritora.
Mas se fizer um documento oficial também escolho os termos. Menos disto e mais daquilo. É uma questão de ritmo, ser escritora passa pelo diverso, obviamente sou forçada a convir que sou capaz de escrever, não importa o quê, muito embora pese o modo como escrevo. Há quem lhe chame arte. Seja. Eu assumo, o escrever é-me fácil, apraz-me de sobremaneira e ilude-me no bom sentido.
Se uso subtileza na escrita?
Eh pá... Sim.
Se alguém entende os meus textos?
Não sei.
Não posso deixar que me morram as dúvidas, depois escrevo o quê, se viver acertadamente não é o meu forte?

Bê-á-bá
«Sim, tenho isso. Não quero mas tenho.
Melhor admitir por causa da ajuda.
Impressão errada, sim, pode ser.
Porra.»
É agradável, mas nem sempre, este momento que para ali está, no meio do arvoredo. O bom do momento abala, se quer companhia e duvida que a obtenha. Não há nada a fazer.
A companhia... Quere-a quando lhe apetece falar das mágoas, mas entretanto chega-lhe uma consciência fatídica com a forma dum ponto de interrogação: quem será capaz de lamentar com ela a sua vida?
A solução?! Não, não se avista...
A vida continua.
Mudou de esquina. Por causa das dores deixou de pensar na solidão, deixou de a procurar. Aceitou-se.
|ptuoeeg|

0.20€
Alguém perdeu vinte cêntimos?
Se ninguém se manifesta, então são meus. Apanhei-os junto a uma sarjeta húmida e emporcalhada, numa esquina lisboeta.
Achar moedas é fantástico na medida em que se poupa dinheiro pra caraças. Vou beber um café: olha, o café já me fica mais barato. Vou comprar laranjas: olha: assim fica-me mais barata a feira. Apetece-me comprar uma colher de pau: olha, posso comprar que achei vinte cêntimos há pouco, sempre gasto menos. Ou seja: aforrei sessenta cêntimos. Ilusoriamente, bem sei, mas para que é que isso interessa, se as verdades são aquilo que eu quiser?

Momento baratinado
Induzi a pessoinha a desembuchar o que pretendia do estamine e ela responde:
'Venho ver.'
Entendo por bem entrar em hiato e ela perscruta o espaço, curiosa mas sem nenhum vestígio daquela paixão que vejo em tantas expressões quando descobrem uma drogaria.
'É uma drogaria?'
'Quem, eu?'
Foi o que tive vontade de responder mas a ironia não seria bem aceite e limitei-me ao esperável:
'É.'
'Hum, já não via uma drogaria em Lisboa há muito tempo...'
Comentário trivial, o dela. Também me servi do trivial e por junto atuei em concordata:
'Sim, estão a escassear.'
Nisto foi-se embora, deixando-me livre e entregue ao meu mais comum viver.

Conversa controversa
Entrei num bar temático, cheio de enfeites marinhos, mas com poucas mesas vazias, tanto que me sentei ao balcão. Não cheirava a maresia mas idealizei que sim, sugestionada pelo derredor. Olhei demoradamente para a vastidão de garrafas expostas e deixou de me cheirar a mar para me cheirar a álcool, que sou muito dada a sugestões odoríferas. Fiquei indecisa, assim para o muito. Que ia beber?! Estava sozinha, sem apoio, e desabituada do ambiente. Hum...
Do outro lado do balcão um senhor fardado fez o gesto de quem me queria atender. Sou destemida quando sou forçada a viver experiências invulgares, sem me alongar pedi-lhe que escolhesse algo para mim, que não gosto de bebidas fortes mas têm de saber a álcool. O homem disse qualquer coisa bruscamente, não soube lidar com a súbita frontalidade que mostro em algumas ocasiões e que contrasta enormemente com a aparente timidez. Fiquei atrapalhada, fiquei sim, sou mulher para me atrapalhar com poucochinho, deveras sensível às reações das pessoas. Mas a par disso possuo um certo arrojo, quase sempre escondido, que eu não gosto de o mostrar a toda a gente, é como que uma vontade que cresce em maneiras de me sentir completamente à-vontade. Continuei a luta, pois também sou casmurra de quando em quando.
– Arranje-me uma marguerita, por favor. Com muito sal no bordo do copo para eu passar a língua prazerosamente, sorver o líquido turvo com uma vontade contida, os dentes fazendo as vezes duma rede que não deixará entrar o gelo dentro da boca, quero que derreta dentro do copo, esperar a marguerita como que transbordar antes de cada golinho que me há-de saber a limão muito ácido e a Tequila. Principalmente a Tequila, a ver se rodopio aqui sentada, enquanto absorvo o resto do lugar, que eu cá adoro essas cenas de olhar e tal, para as pessoas, para os objetos, pensar e cismar e disfrutar de tudo quanto é visível e invisível, plausível e impossível. Quero relaxar, o dia foi ruim, a minha vida está estranha, eu sou uma pessoa muito especial. Quero uma marguerita, é isso mesmo. Obrigadinha.

Uma e outra vez
É um poliban pequeno, 40X40, para aí. Mostra-mo sempre. Mostra-mo todas as vezes que lá vou.
É verdade. É mesmo verdade → sempre.
Mostra-me as bonecas também. Porque não as teve em criança, são os amigos e amigas quem lhas oferece com frequência. «Brinco agora!», exclama, feliz. Mostra-me o móvel comprido que esconde uma cama de casal, usada aquando das visitas.
Outra vez? Outra vez. Outra vez a mesma conversa? Sim.
Interiormente desprezo a já tão batida mostra de pertences, passo o olhar pelos bibelots valiosos e dou especial atenção às fotos expostas, esses segundos congelados em pedaços de papel, com um significado diferente em cada vez que os contemplo. Fossem as fotos minhas ou de familiares meus e não teriam mais do que um significado, ainda que a contemplação se fizesse todos os dias, e mesmo mais do que uma vez. A vida dos outros é que pode ser transformada, não a minha.

A vida simples da passarada
Aqui há voos rasantes de passarinhos. Passarinhos livres. Só tem de haver silêncio durante alguns minutos, o que não é incómodo nenhum, e esperar. Perto do meio-dia há chilrear em conjunto, apelam ao restauro, quiçá. Ao entardecer, então, nem se fala, cuidam de acabar com o mundo, tal é o frenesim. Depois escurece e não se fica a conhecer mais nada. A não ser que no dia seguinte haverá mais do mesmo. A certeza do futuro. É a vida simples da passarada.

No supermercado
Homem roda queijos curados nas mãos, deleitando-se no prazer do seu aroma especial e atentando nas cores e estado do processo de cura.
Mulher deambula, resignada. Tem um olhar baço e uma postura que reflete cansaço, talvez seja por isso que não se mantém quieta.
Homem, com cara de puto extasiado e feliz, pergunta:
- Queres levar?
Mulher levanta o olhar para ele e com uma seriedade desconcertante responde com outra pergunta:
- Aonde?

No consultório
Ouvia-se uma senhora tagarelando desenfreadamente. A fisioterapeuta segredou-me:
– É a dona Felícia, escreve poemas. Não se cala, está sempre a fazer a promoção livros dela. Ofereceu-nos um, autografou-o e tudo... Mas eu ainda não o li.
Os escritores são uns solitários do caraças. Porra para isto de escrever.

Mulher feia
A tertúlia na mesa de café incidia gravemente sobre a fealdade dalgumas mulheres. Era demonstrado o marcado desinteresse e repulsa que a falta de beleza no feminino consegue no mundo dos homens. E eis que entra um espécime do infeliz grupo: uma mulher feia, sem que eles dessem por isso, que estavam tão distraídos...

Encanto
Comprei uma camisola com a palavra 'enchantè'. É linda, cinzenta, com relevos. Os relevos são fofinhos, onde não há relevo há transparência mui ligeira. As letrinhas 'enchantè' são dum prateado cheio de graça e requinte, nada de muito vistoso.
Não precisava da camisola, preciso é de me sentir uma alma simpática, dirigir-me às pessoas com quem me cruzo, dizer que estou encantada sem vocalizar. Vai ser maravilhoso, depois, quando aquela coisa da reciprocidade começar a dar frutos, e toda a gente se encantar comigo. Encanto vocalizado, preferencialmente, para serem diferentes de mim.

(Falta de) Romantismo
A Elsa disse ao marido que precisava de um boião de creme para o rosto daqueles bons. A bisnaga está no fim, e já que tem de se comprar, desta vez a ver se se compra uma coisinha como deve ser.
O marido responde sem rodeios que lhe vai sobrar um pouco do óleo que ainda há-de comprar para o carro, ela que o use na tromba, deve dar resultado.
A Elsa conteve-se, não vale a pena birrar, a bem da verdade sempre faz o que quer, os homens são uns parvos de primeira apanha, esta manhã até havia ouvido na radio que eles só ouvem com um dos lados da cabeça, os pobrezitos...
Mais tarde, ao entrar na autoestrada, o marido da Elsa distrai-se a olhar para o lado.
– Olha aí o raile, ó parvo! O trator não é tão interessante assim... Dás cabo do carro, pá!
Só dão atenção a uma coisa de cada vez, é mesmo verdade. Este aqui ia-se matando por causa dum trator...

Personificar
É uma senhora alta e feia, lembra vagamente o corcunda de Notre Dame em versão feminina. Tem um sinal no lábio, peludo e grande. Os olhos são esbugalhados e por qualquer motivo mantém um deles meio fechado. É grotesca, mesmo. Rente ao horror. Porém, quando fala, tudo desmorona. Fá-lo tão docemente que apetece ouvi-la contar histórias de embalar. Parece uma fada. Das boas, claro.
Não tenho prazer em inventar personagens. Pode ser falta de imaginação, admito. Gosto de pensar que esta 'falta' existe porque sou demasiado aberta à realidade, dá-me jeito pensar antes assim, é uma maneira de não me sentir minúscula na personalidade e insignificante na escrita.
Personagens para quê se eu observo pessoas absolutamente caricatas todos os dias da minha vida? Se não for para escrever dentro do estilo fantástico – harry potter, senhor dos anéis e companhia –, o qual decididamente não é o meu, não tenho motivo nenhum para inventar personagens, o mundo fornece essas pessoas especiais, lindas, disformes, extremamente arrogantes, particularmente simpáticas, graciosamente fantásticas, carismáticas, geniais, desenxabidas... E todas interessantes, sem exceção.
Personagens e histórias inventadas para quê?!

Como é que é?
Sabes como é, ires na rua e teres uma série de frases que queres apontar, tipo lembrete, sentes uma enorme necessidade de te sentares para escrever o que fervilha na tua cabeça, que ainda te distrais com as azedas amarelinhas e o caraças, chove um pouco, uma espécie de borrifos aqui e ali, precisas de te sentar para fazer esses apontamentos mas o único lugar que avistas já vai estando molhado e ainda por cima deve estar frio que nem cubos de gelo, eu sei que este texto vai longo, mas sabes como é? Então se não sabes devias saber.

A mulher
Apoia a gaguez na palavra 'assim'. Teve uma madrinha que lhe deu muito que fazer nos últimos tempos de vida, ele era chamar nomes feios, ele era dizer que a roubara, ele era respostas tortas. Um calvário. E a gaguez a repousar, a tomar alento na palavra 'assim'.
Fala muito mas também consegue ouvir. Tem longos períodos de silêncio, mexe-se compulsivamente, com trejeitos nervosos e imprecisos, os olhos rolam desordenadamente, como se a sua cabeça fervesse em indignação, independentemente do tema que escuta. Credo, que nervos. É contagiosa, esta coisa dos nervos. Gaguejar já eu gaguejo lá de quando em quando... Também tenho longos períodos de silêncio... Mau maria...

Estória
Era uma vez uma mulher que roía cenoura crua e achava que isso era sensual. Até ao momento em que ficou com vergonha e fez 'ups!' com a boca cheia e cuspiu pedacinhos de cenoura moída e salivada.

Filha
Chama-me filha com modos carinhosos. Tem sempre qualquer coisa a dizer, sendo que diz sempre a mesma coisa. Como estão o marido, os filhos e os velhotes e se tudo vai bem.
Ultimamente tenho reparado nesta existência fugaz e algo transparente. Há pessoas que pela sua simplicidade e o seu ar apagado e contido não possuem nada donde eu retire interesse. Um dia há um clique qualquer... Julgo que seja o prazer em deixar registado presenças que existem na minha vida mas nem por isso façam parte dela.
O mote para estas linhas que escrevo foi o facto de ela me chamar sempre filha, com um carinho despretensioso. Talvez seja essa a sua marca. É uma marca pouco profunda que encontrei sem pesquisar. Aconteceu. Clique.
Sempre há um colorido sobressaindo dum cinzento apagado, um pontinho de luz reluzindo em alguém fracamente iluminado. Que não se menospreze ninguém.

O amorzinho; o almocinho; o docinho e outras coisinhas
Fui almoçar a casa de uns amigos. Uns conhecidos, quero eu dizer, que amigos são outra coisa.
A anfitriã havia-se esquecido de preparar a saladinha à portuguesa: alface, tomate, pepino, cebola. Já sentada à mesa desmancha-se e desabafa que tinha tudo comprado mas fazer a salada é que não se tinha lembrado. Acrescenta ainda que não aprecia saladas e verduras, só não diz o quanto odeia por vergonha das visitas. Mas o marido adora, o filho mais velho idem, e ela, por si só, lá se convence:
– Vou fazer a salada, faço-a num instante!
– Ó ‘mor… Não te importas?
Diz ele cheio de amabilidades, valorizando imensamente o préstimo forçado dela...
A refeição quase terminara. De sobremesa houve mini gelados pastosos e sensaborões, o que contrastou um pouco com o prato principal – frango à brás – a qual, sendo uma refeição económica, estava bastante saborosa.
Fui a salvadora do momento doce, levara de casa uma musse de bolachas oreo que é simplesmente divinal. Até os manos mais novos da anfitriã, filhos da mesma mãe mas de pais diferentes, dissera ela por entre garfadas, os dois calados e sorrateiros se lamberam com a minha iguaria.
Comecei por ajudar a levantar a mesa mas mandaram-me parar, uma visita não trabalha e blás, aquelas coisas que a gente diz para parecer bem mas era uma sorte do caraças que alguém tivesse a trabalheira, que não nós.
Quando dou por isso está o anfitrião lavando a louça e elogiando a minha taça, que bonita é. E a anfitriã, que é feito dela? Está lá fora na varanda, fumando um cigarro.
Sou invadida por aquele sentimento tão bem descrito numa canção d' agora: 'os maridos das outras'. Porra, pá, olha só a sorte desta cabra! Eu cá não fumo, tudo bem, mas era fixe o meu marido tratar da louça enquanto me dedico à escrita...
Acabou a refeição. Está um calor que não se pode dentro daquela casa minúscula. Olívia, a minha cadela, está apreensiva, ainda não saiu de debaixo da mesa. Todos falam, gesticulam, defendem umas ideias, anuem a outras. Eu não, estou prestes a aborrecer-me, exausta de me forçar a sentir (ou a parecer...) bem-disposta e alegre. Quem dera ser uma cadela ou outro bicho qualquer...
Sinto-me diferente mas faço finca-pé: não sou diferente, quero antes dizer: os outros é que são diferentes. Eu não tenho nada que me sentir deslocada no meio das pessoas só porque elas são diferentes de mim...
(Iupi! Sou escritora, iupi!)
Sou tão diferente. Queria tanto não o ser.

Assoadela
O senhor António parecia constipado, assoava-se timidamente a um lencinho branco.
– Está constipado, senhor António?
– Estou um bocadinho, estou.
Estava.
Noutro dia encontrei-o nestas imediações a uma hora improvável fazendo-se acompanhar da (para mim desconhecida, até então) esposa. A dita é uma figura um tanto ou quanto estranha, maluca, ou assim, falava inconsequentemente, sem espaço para uma entoação saudável, num discurso desinteressante. Não sei explicar muito bem isto... Hoje, quando vi o senhor António e lhe perguntei das boas entradas no novo ano e isso, não fui capaz de estender os votos à já conhecida esposa, não soube que cara fazer. Que cara se faz quando estamos a falar para alguém que lida bem de perto com uma espécie de loucura, doentia, por certo? Quando estamos em modo normal? Como é?

A notícia
Dona Genoveva compra um desumidificador. Batati-batatá, como é, como é que não é.
Montei o artigo, pu-lo a jeito de quando chegasse a casa a dona Genoveva apenas tivesse de colocá-lo no sítio pretendido, isso era lá com ela, mas não sem antes despejar no recipiente os cristais de cloreto de cálcio, as palhetas brancas que retirarão a indesejada humidade.
Cinco minutos depois do negócio feito toca o meu telefone, era a dona Genoveva dizendo que não sabe mexer em coisas, credo jesus senhor, que lhe deem algo para escrever, isso sim, que caiu tudo ao chão e ela teve de andar a varrer e apanhar com a pá do lixo e depois despejar no orifício do objeto, que todo este episódio foi um verdadeiro bacanal. Falava como é seu costume: desenfreadamente, num discurso recheado de pormenores.
O leitor não sei, mas eu achei um piadão ao bacanal...

De passagem
Devido ao deambular do costume reparo nos canhões das fechaduras das portas dos prédios, se estão arrasados, gastos, a precisar de reciclagem ou assim. Também noto as fechaduras montadas ao contrário ou de lado, e ainda outras minudências, como puxadores desalinhados, espelhos soltos e parafusos desapertados, ou com as roscas passadas, ou então inexistentes.
Estes reparos todos são coisas da profissão que roça nas ferragens, que se eu tivesse continuado costureira apenas repararia em casas tortas ou mal chuleadas, botões cosidos com linha de cor diferente, riscas ou quadrados descombinados, bolsos mal metidos, pespontos tortos e bainhas com dentes de cão.
Assim... Vejo tudo isto. Tenho duas profissões.

O cobertorinho
No início a minha mãe vinha-me ajudar a fazer a cama. Primeiro as fronhas, uma para cada uma de nós. Depois lançávamos o lençóis. Estendíamo-los, esticávamo-los e dobrávamo-los por baixo do colchão. Um e outro. A dobra do segundo muito direita para ficar uma cama bem-feita.
Quando chegava a vez do cobertor é que eram elas... O raio do cobertorinho era quase quadrado, difícil encontrar-lhe o preceito. Mas a minha mãe conhecia-lhe a manha, era assim, com as cornucópias apontando para ali, formando determinado desenho.
«Estás a ver que é assim, filha?»
Na hora, quando me apercebia do preceito da minha mãe, via o quanto era fácil.
«Ah, então é assim.»
Pensava eu. Mas não dizia nada. Talvez sorrisse. O sorriso ilude o próprio e os presentes.
Entretanto a minha mãe deixou de me ajudar, agora vejo-me sozinha com o estender na minha casa em geral. Nunca sei para que lado são as cornocópias do cobertorinho... Fixo depois de lhe adivinhar o preceito. Adivinho porque vou às apalpadelas, só há duas hipóteses, e não é costume acertar à primeira. Quando apanho o cobertorinho estendido a preceito, sou capaz de fixar. «Hum, ok, as cornocópias são para ali...» Para dois minutos depois me esquecer completamente e tudo retornar na próxima vez.

2 comentários:

  1. Aqui sim! Gosto.
    Do Google+ não!
    Delicie-me, como sempre, com este nascer, digo nascer, pois é imensa a forma como as ideias lhe surgem e as deixa aqui.
    Adoro!
    Um beijo e Bom fim de semana.

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  2. Também não gosto nada do Google+, Manuel, gosto daqui. Muito.

    Bom fim de semana.

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