sexta-feira, 23 de maio de 2014

Obituário

Morreu o senhor professor. Ora caraças.
Em tempos há muito idos o senhor professor foi o homem do tambor.

P' ra que servem os piaçabas?
O homem entrou na loja e perguntou-me se eu tinha piaçabas à antiga. Respondi que sim. Depois de ter na mão um "piaçaba à antiga" perguntou-me:
- E isto é feito de quê?
- É feito de piaçaba natural - respondi num tom neutro mas pensei para comigo em tom indignado: "É claro que é feito de piaçaba!!! Afinal, foi o que me pediu!!!"
Ele quebrou o meu pensamento indignado porque pegou em dois piaçabas, um em cada mão e, em cima do balcão, simulou um tambor. Olhou para mim e sorriu perante o meu olhar que espelhava espanto.
- Sabe p' ra que quero eu isto? - perguntou-me, referindo-se aos piaçabas. Continuava a fingir que tocava num tambor manipulando os piaçabas como se fossem as baquetas de um tambor. Demonstrava grande à-vontade no gesto denunciando assim que sabia mesmo manusear tais objectos.
- P' ra tocar num tambor?! - perguntei-lhe de volta, completamente surpreendida.
- Sim - disse simplesmente. E riu. Muito. Ri também por contágio e também pelo prazer da descoberta. E ele ia tocando em cima do balcão de vidro e rindo porque o toque produzia mesmo um som. E eu ria-me com ele.
- Hã? Que tal? Faz um som porreiro não faz?
- Faz - respondi eu - mas é capaz de em cima do tambor fazer um som diferente por ser de outro material - eu e a minha mania dos pormenores, até parecia perceber alguma coisa de tambores ou de percussão.
- Hã? Não!! Mas dá p' ra ver!!... - sorriso aos molhos que rapidamente se transformou em sonoras gargalhadas - até me fez rir!! Já viu?!
Fiquei a pensar se ele se estaria a rir porque me fizera rir a mim ou porque aquilo de que alguém lhe falara (tocar tambor com piaçaba) afinal era mesmo verdade; era mesmo assim; fazia um som mesmo porreiro...
Quero voltar a vê-lo para lhe perguntar.
|25 de maio de 2008|

Fumo
O homem do tambor descai um pouco a cada dia. Lá estava ele sentado à mesa de uma esplanada, as mãos ocupadas com o copo de vinho, o cigarro e a bengala, o olhar fitando o nada.
Calhou ele estar no meio de uma conversa entre mim e a rapariga da porta ao lado. Ela fumava e queixava-se do frio e veio-me à cabeça perguntar-lhe se o cigarro não a aquecia. O homem do tambor meteu-se e diz numa voz rouca pelos anos de fumo:
- A mim não me aquece nem me arrefece!
Inclui-o na conversa, eu que sou uma boa alma, e para prolongar o debate perguntei-lhe se lhe sabe sempre bem o fumo e aquela coisa toda que o fumar envolve.
- É fumadora?
- Não.
Ante a minha resposta o bicho remata com desdém:
- Então fume e assim fica a saber!
OK, homem do tambor, queres matar a conversa à nascença porque és parvo. O que eu agora devia fazer era pedir à rapariga da porta ao lado para te mandar o fumo direito às ventas!
|19 de maio de 2010|

Sorriso sabedor
O homem do tambor havia depositado o mesmo no chão. Queria parafusos para fixar algo que tinha solto no tambor.
Olhou-me e sorriu divertido, parecia uma criança mostrando o brinquedo preferido. O momento valeu pelo sorriso dele, porque não é uma pessoa de sorrisos, e pela visão conjunta e nunca antes vista de ‘homem+tambor’.
O sorriso mostrou uma dentadura irregular e escura mas também mostrou que sabe que eu lhe acho um piadão. Ele sabe… Só não sabe que eu lhe chamo o homem do tambor, creio.
|20 de julho de 2010|

Música
O homem do tambor reparou nos meus brincos clave de sol. Quanta perspicácia!
Ressalva: o homem do tambor é músico.
Lembrete: aqui, às vezes, o homem do tambor é o senhor professor.
|31 de março de 2011|

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