sexta-feira, 26 de julho de 2013

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De costas. Que crónica incrível. Ler texto abaixo, por favor.
Que incrível o facto de colocarem as estátuas de costas umas para as outras, nenhuma se vê de frente. Ver fotos abaixo do texto, por favor.

«Sonhei que saía à rua e que estava tudo de costas. Só se via a parte de trás das casas e a nuca das pessoas e os traseiros dos cães e as caudas dos pássaros. Caminhava por uma ruela traseira que em vez de mostrar as montras das lojas revelava a sua parte de trás, o seu lado obscuro. O mundo tinha-me virado as costas. Virei a cabeça para trás, pensando que, desse modo, veria narizes, olhos, bocas, pálpebras, mas para onde quer que olhasse só via nucas, nádegas e omoplatas. Quando me resignei ao espetáculo, apercebi-me da pouca atenção que costumamos prestar a esta parte do corpo e da realidade. Trabalhava, no sonho, como ajudante de um fotógrafo que só fotografava o inverso das pessoas e das coisas. Naturalmente, eu só via as costas do fotógrafo. As paredes do seu estúdio estavam cheias de pessoas que só mostravam a nuca. No meio de todas aquelas fotografias, vi a de uma árvore que era uma raridade, pois as árvores não têm parte da frente nem detrás. (…)
A vida quotidiana estava cheia de pequenas dificuldades, pois em vez de lavar os dentes tinha de me conformar com raspá-los com a parte de trás da escova. E para tirar a pasta de dentes, tinha de apertar o fundo da bisnaga. Naturalmente, usava as camisas do avesso, o que era uma tortura quando tinha de apertar os botões. O pior, contudo, eram os livros, pois só se podiam abrir por trás. Ao princípio, lia-os de trás para a frente, mas passado algum tempo, comecei a lê-los diretamente ao contrário. Quero dizer que a realidade teve de repente, ainda que com a naturalidade com que se vivem as coisas mais estranhas nos sonhos, uma mudança subtil, de maneira que a partir de determinado momento as coisas, não apenas estavam de costas, mas ao contrário. A minha família, por exemplo, tinha as vísceras do lado de fora, tal como o canário. E em vez de me dizer bom-dia, diziam aid-mob. (…)
Sorri ao imaginar que o passo seguinte consistiria em viajar pelo avesso da realidade. Ao sorriso seguiu-se um movimento de pânico. Calhou que eu passasse junto a uma estação de serviço que estava de costas para a estrada (o mais certo era a parte da frente dar para a autoestrada). Também vi a fachada das traseiras de vários restaurantes. Compreendi que devia voltar imediatamente para a autoestrada, mas não via como fazê-lo; não havia nenhuma indicação a anunciá-la. E se me resigno, perguntei a mim próprio, a chegar ao meu destino viajando pela parte de trás? Fi-lo, resignei-me, mas com muito medo. Compreendi, ao terminar a viagem, até que ponto estamos habituados a viver só numa parte da realidade. É um erro, como se só habitássemos uma parte da nossa casa ou do nosso corpo.»

'Os Objetos Chamam-nos', Juan José Millás

Lisboa - praça de Londres, 25 de julho de 2013

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